quinta-feira, 11 de março de 2010

TRIBUNAL DO JÚRI E ESCRAVIDÃO

O amigo e colega da Procuradoria Geral do Estado do Piauí, Yuri Costa, brindou a comunidade jurídica com um elucidativo artigo sobre o Tribunal do Júri e a escravidão. Confiram!

TRIBUNAL DO JÚRI E ESCRAVIDÃO

É na dramaturgia desenvolvida na Atenas do século V a.C que se pode encontrar a origem histórica do Tribunal do Júri. A tragédia grega contém a maioria dos relatos sobre o início dessa instituição, àquela época denominada Aerópago.

Ésquilo, o mais antigo dos grandes dramaturgos gregos, apresentou na cidade de Atenas (458 a.C.) uma peça denominada Oréstia, composta de estórias que relatam a saga do herói Orestes, que foi julgado por ter assassinado sua mãe (Clitemnestra). Quando o herói, influenciado pelo remorso, pede o apoio da deusa Atena, esta delega seus poderes jurisdicionais a um tribunal, surgindo uma instituição composta por homens capazes de julgar um crime de assassinato cometido por outro homem. Ao fim, Orestes é absolvido pelo Aerópago.

O tribunal composto para julgar Orestes representa o nascimento de um novo sistema jurídico. Com a absolvição do herói grego, deixava-se de punir, pela primeira vez, alguém que confessamente matou um familiar, negando a tradição que impunha a pena de morte a matricidas. Os acusadores de Orestes, as Fúrias, seres divinos que vingavam crimes de sangue, conceberam como perigosa a instalação do Aerópago. Entendiam que a delegação aos homens do poder de julgar crimes daquela natureza representava a corrupção de toda a justiça ateniense, por não mais ser feita pelos deuses.

O Aerópago somente tinha competência nos limites da cidade de Atenas. Sua constituição girou em torno dos habitantes daquele local, os “cidadãos”. Eles, enquanto jurados, simbolizavam que os atenienses tinham plena capacidade de deliberar e decidir sobre o futuro de criminosos. A criação do Aerópago foi uma espécie de autenticação, pelos deuses, de que Atenas chegara a um nível de desenvolvimento no qual seus cidadãos teriam plena capacidade de decidir sobre o destino daqueles que cometessem crimes de maior reprovação.

A significação dada pelos gregos ao Aerópago adquiriu peculiaridades nos sistemas jurídicos ocidentais que se desenvolveram após a Idade Média. Destacaram-se, nesse contexto, a tradição inglesa do séc. XVI, marcada pela desvinculação do júri da Igreja, e a francesa, que ao longo dos séculos XVIII e XIX aproximou o Tribunal do Júri da idéia de “civilidade”.

O Brasil foi influenciado diretamente pelos sistemas jurídicos da Inglaterra e França. Aqui a estruturação do Tribunal do Júri aparece como parte do processo de constituição do aparelho judiciário deflagrado com nossa independência política (1822). Nesse contexto, a idéia de civilidade é recorrente. Construir uma estrutura judiciária para a nação, agora independente, significava promover o processo civilizador do país.

A presença de um aparato judiciário sólido nega a solução de conflitos pelo confronto direto, e mesmo físico, entre opositores. Surge, ao menos nos grandes centros urbanos que se formaram no Brasil imperial, a crença na necessidade de mediação dos conflitos pelo Estado e, em específico, pelo Poder Judiciário. A Justiça Pública aparece então como esfera que busca centralizar a atuação do Estado na resolução de conflitos e que, como conseqüência, promove o comportamento civilizado dos cidadãos.

Um dos principais símbolos que derivam da relação entre as idéias de Justiça Pública e civilidade é justamente a instituição do Tribunal do Júri, fruto direto dos princípios liberais franceses do séc. XVIII. No Brasil, o júri surgiu com o chamado “Juízo de Jurados”, criado através de um Decreto Imperial de D. Pedro I, publicado em 18 de junho de 1822. A Constituição do Império de 1824 confirmou a instituição do júri e ampliou suas atribuições. Porém, o procedimento a ser seguido por aquele órgão somente seria descrito com detalhes no Código de Processo Criminal de 1832.

A idéia de que o júri mantinha direta relação com a soberania popular parece ter se difundido rapidamente. Um tribunal que, entregando aos cidadãos o poder de condenar (ou absolver) de maneira racional seus criminosos, demonstraria a polidez de nossa sociedade. A determinação de quais localidades acolheria um júri acompanhou a idéia de que a instituição simbolizava o grau de urbanidade de cada região. Tal como em sua origem histórico-mitológica, a “cidade” é o referencial que, imerso no discurso da civilidade, alimentaria o imaginário sobre o júri.

Um dos principais problemas que a ação de Tribunais de Júri encontrou em regiões escravocratas do Brasil foi qual o tratamento jurídico a ser dado ao escravo negro envolvido em delitos, seja como autor ou como vítima. Esse tratamento foi marcado por contradições. No âmbito do direito patrimonial, o escravo era considerado propriedade (res), não sendo tido como cidadão para quaisquer efeitos em relação à vida pública. Criminalmente, o escravo ficava dotado de certa personalidade.

Porém, era na dinâmica dos procedimentos judiciais que as peculiaridades do tratamento dado ao escravo se tornavam mais evidentes, surgindo modificações do suposto “direito comum” caso o autor, vítima ou testemunha de crime fosse um cativo.

Foi dentro dessa dinâmica que o Poder Judiciário imperial, através dos diferentes Tribunais do Júri aqui localizados, projetou-se sobre tradicionais formas de resolução de conflitos entre senhores e cativos, negando, por vezes, o poder senhorial sobre a vida do escravo, embora ainda reconhecesse este como propriedade.

Para a nascente Justiça Pública do Brasil independente, os senhores não poderiam mais ditar a punição cabível a crimes dos cativos. A desordem dos particularismos deveria ser afastada pela presença do Poder Judiciário. O senhor, principalmente nos centros urbanos, agora deveria ir às autoridades policiais ou judiciais, registrar o crime e obter uma ordem para a punição no pelourinho público, pelo qual pagava as chicotadas por dezenas ou centenas. Outros tipos de punições, que variavam desde a aplicação de palmatoadas até a da pena de morte, deveriam ter também, a partir de então, aval público. O próprio Estado se encarregaria de ministrar a execução da pena, visando, com tal medida, reafirmar sua natureza enquanto esfera centralizadora do poder de punir.

Por se estar tratando da possibilidade da criação de turbulências nas já tensas relações entre senhores e escravos, agia-se cautelosamente nos tribunais. Em grande parte, a nascente Justiça Pública se tornaria instrumento utilizado pela política local como lugar de resolução de conflitos que se mostravam insolúveis através de acordos particulares. Desse quadro derivou, não raras vezes, a deturpação das funções do Judiciário e, em específico, do Tribunal do Júri. (Publicado no Boletim Informativo da Associação Piauiense dos Procuradores do Estado do Piauí. Ano VII, n. 16, jan/fev/mar 2010, Teresina, p.4).

Yuri Costa

Mestre em Ciências Sociais/UFMA. Professor de História do Brasil da Universidade Estadual do Maranhão e de Direito Administrativo da Escola Superior da Magistratura do Estado do Piauí. Autor de A outra justiça: a violência da multidão representada nos jornais (EDUFMA, 2008). Procurador do Estado do Piauí.